Abril 27, 2024

Minuto da consciência crítica: Cansada e cansado psicologicamente das inafastáveis injunções externas no trabalho e do peso das determinações sistêmicas Destaque

seus problemas acabaram…

Agora, são oferecidas diferentes técnicas “tabajaras”, como coaching, programação neurolinguística (PNL), análise transacional (AT) e múltiplos procedimentos ligados a uma "escola" ou um "guru" que visam a um melhor "domínio de si mesmo", das emoções, do estresse, das relações com clientes ou colaboradores, chefes ou subordinados.

Todas com objetivo de fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade, torná-lo mais operacional em situações difíceis.

O texto a seguir desvela algumas destas falácias.

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A "GESTÃO DA ALMA” E A GESTÃO DA EMPRESA

Todos esses exercícios práticos de transformação de si mesmo tendem a jogar o peso da complexidade e da competição exclusivamente sobre o indivíduo.

Os "gerentes da alma", segundo expressão lacaniana retomada por Valérie Brunel, introduzem uma nova forma de governo que consiste em guiar os sujeitos fazendo-os assumir plenamente a expectativa de certo comportamento e certa subjetividade no trabalho.

Se todo indivíduo deve desenvolver suas qualidades pessoais para reagir rápido, inovar, criar, "gerir a complexidade numa economia globalizada", como dizem as expressões estereotipadas em voga, é porque todo indivíduo é idealmente um gerente com o qual se deve contar para resolver os problemas.

O domínio de si mesmo e das relações comunicacionais aparece como contrapartida de uma situação global que ninguém consegue mais controlar.

Se não há mais domínio global dos processos econômicos e tecnológicos, o comportamento dos indivíduos não é mais programável, não é mais inteiramente descritível e prescritível.

O domínio de si mesmo coloca-se como uma espécie de compensação ao domínio impossível do mundo. O indivíduo é o melhor, senão o único "integrador" da complexidade e o melhor ator da incerteza.

Se, portanto, trata-se de "trabalho de si mesmo", "realização de si mesmo", "responsabilidade por si mesmo", isso não significa reclusão do sujeito, que toma a si mesmo por um objeto sem nenhuma relação com qualquer instância ou ordem que lhe sejam externas.

Para falarmos como Foucault, o "cuidado de si" - se é que existe um "cuidado de si” -, nesse caso, não é um fim em si mesmo, porque o si não é objeto e fim desse cuidado - não se trabalha a si mesmo com a finalidade única de produzir certa relação consigo mesmo, isto é, unicamente para si.

Pierre Hadot ressaltou, aliás, que, ao contrário do que podia dar a entender a interpretação foucaultiana, a "cultura de si" da época helenística (séculos I e II) remetia a certa ordem do mundo, a uma razão universal imanente do cosmo, de modo que o movimento de interiorização era ao mesmo tempo autossuperação e universalização. De certa forma, as "asceses do desempenho” não escapam a essa lógica.

Obviamente, essa ordem não é mais a ordem da "Natureza" estóica ou a ordem desejada pelo Criador à qual a "ascese intramundana" da ética protestante se atrelava.

No entanto, essa "ascética" encontra sua justificação última numa ordem econômica que ultrapassa o indivíduo, uma vez que é expressamente concebida para conformar a conduta do indivíduo à "ordem cosmológica" da competição mundial que o envolve.

É claro que o indivíduo trabalha a si mesmo para se tornar mais produtivo; contudo, ele trabalha para se tornar mais produtivo a fim de tornar a empresa - que é a entidade de referência - mais produtiva.

Mais do que isso: os exercícios que supostamente melhoram a conduta do sujeito visam a transformá-lo num "microcosmo" em perfeita harmonia com o mundo da empresa e, para além dele com o "macrocosmo" do mercado mundial.

No fim das contas, trata-se de fazer com que a norma geral de eficácia que se aplica à empresa seja substituída, no nível individual, por um uso da subjetividade destinado a melhorar o desempenho do indivíduo - seu bem-estar e sua gratificação profissional são dados apenas como consequência dessa melhoria.

Portanto, as qualidades que devem ser desenvolvidas pelo sujeito remetem a um universo social em que a "apresentação de si mesmo" é um desafio estratégico para a empresa.

Se o indivíduo deve ser “aberto”, “síncrono” “positivo”, “empático”, “cooperativo”, não é para a felicidade dele, mas sobretudo e em primeiro lugar para obter do "colaborador" o desempenho que se espera dele.

Pode parecer que há algo de perverso na manipulação de temas que são ao mesmo tempo morais e psicológicos.

Porque é exatamente como instrumento eficaz que o sujeito interessa e que se quer impor a ele certa conduta "correta" em relação aos outros.

A despeito das aparências - que, aliás, participam plenamente da gestão das subjetividades -, não se trata de aplicar conhecimentos psicológicos ou problemáticas éticas ao mundo da empresa; ao contrário, trata-se de construir, com o auxílio da psicologia e da ética, técnicas de governo de si que são parte interessada do governo da empresa.

Esse é o fundamento da teoria de Will Schutz, psicólogo norte-americano e autor de uma teoria intitulada Orientações Fundamentais das Relações Interpessoais (Firo, em inglês).

Em Human Element: Self-Esteem, Productivity and the Bottom Line, ele escreve: "Eu escolho minha vida - meus comportamentos, pensamentos, sentimentos, sensações, recordações, fraquezas, doenças, corpo, tudo - ou, então, escolho não saber que tenho escolha. Sou autônomo quando escolho a totalidade da minha vida".

Em outras palavras, quando não se pode mudar o mundo, resta inventar-se a si mesmo.

Nem a empresa nem o mundo podem ser mudados, eles são dados intangíveis.

Tudo é questão de interpretação e reação do sujeito.

Schutz escreve ainda: "O estresse não resulta dos 'estressores', mas da maneira como interpreto e reajo a suas injunções”.

Técnica do si mesmo e técnica da escolha misturam-se completamente.

A partir do momento que o sujeito é plenamente consciente e mestre de suas escolhas, ele é também plenamente responsável por aquilo que lhe acontece: a "irresponsabilidade” de um mundo que se tornou ingovernável em virtude de seu próprio caráter global tem como correlato a infinita responsabilidade do indivíduo por seu próprio destino, por sua capacidade de ser bem-sucedido e feliz.

Não se atravancar com as coisas do passado, cultivar previsões positivas, ter relações eficazes com o outro: a gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados.

Os problemas econômicos são vistos como problemas organizacionais, e estes se resumem, por sua vez, a problemas psíquicos relacionados a um domínio insuficiente de si e da relação com os outros.

A fonte da eficácia está no indivíduo: ela não pode mais vir de uma autoridade externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para procurar a motivação profunda.

O chefe não pode mais impor: ele deve vigiar, fortalecer, apoiar a motivação.

Dessa forma, a coerção econômica e financeira transforma-se em autocoerção e autoculpabilização, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece.

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A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal - Pierre Dardot e Christian Laval - págs. 342/345 

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